quarta-feira, 25 de março de 2015

Arte como prática agonística: pensando práticas artísticas contemporâneas a partir de Chantal Mouffe


Brasil dos anos 1960/1970: arte, cidade e agonismo

Na arte brasileira a questão política em conjunto com a preocupação estética, de experimento linguístico, foi marcante nos anos 1960 e 1970. Os concretistas cariocas do grupo Frente, em desacordo com as propostas paulistas, fundam o Neoconcretismo, movimento que tem em Ferreira Gullar seu principal formulador teórico. Os artistas Ligya Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica são os mais conhecidos - responsáveis pelos futuros desdobramentos do Neoconcretismo que irão, entre outras coisas, marcar a inserção da arte no ambiente, no espaço público.

É a partir da década de 1960, que essa radicalização das experiências neoconcretas promovida por artistas como Lygia Clark, Ligya Pape e Hélio Oiticica se desenvolve. A questão política intervém no trabalho desses artistas de forma impactante, refletida nas experiências artísticas empreendidas por eles nesse momento. É quando Lygia Clark vai buscar a participação do público com os Bichos, esculturas que só se completam a partir da manipulação do espectador, por exemplo. Ou quando Hélio Oiticica radicaliza o envolvimento do outro a partir dos parangolés, esculturas de vestir, trabalhos que só existem a partir do expectador que precisa vesti-lo, adentra-lo. Para Paulo Sérgio Duarte (2008), essas contribuições serão decisivas para a passagem do moderno ao contemporâneo na arte brasileira.

E são decisivas, também, por inserir, de maneira inédita, a questão do envolvimento do artista com o espaço público, com o ambiente e com o outro que habita esse lugar. Por inserir, segundo o entendimento de Chantal Mouffe (2007), o agonismo no espaço público e político da cidade. Envolver o outro, nesse momento, representava tirar os sujeitos de sua passividade crônica, ativá-los, torná-los políticos (no sentido Mouffiano) – ou seja, torná-los passíveis de lutar, de ter voz no espaço público.

Para Mouffe, o político é a dimensão do antagonismo – do conflito. Ele diferencia-se da política, visto que esta se refere ao conjunto de instituições, discursos e práticas que tentam estabelecer uma certa ordem, que organizam a existência humana. Porém, a capacidade estruturante e organizativa da política se dá através de condições potencialmente conflitivas, visto que são afetadas pela dimensão do político (Mouffe, 2007:18). Desse modo, o antagonismo está constantemente presente nas relações sociais.

Sendo assim, é a relação entre o político e a política que baseia a democracia radical de Mouffe e Laclau. Nesse espaço de democracia pluralista, o âmbito do político tem que se transformado no da política. Isto pressupõe, segundo Mouffe, que o inimigo a ser destruído deve passar a ser visto como adversário a se enfrentar - alguém com ideias distintas que devemos combater, mas cujo direito a defender essas ideias será inquestionável. No campo da democracia radical, o antagonismo, ao invés de ser eliminado, deve ser transformado em agonismo.

Logo, a questão para Mouffe não é se a arte é política ou não, mas sim observar as formas possíveis de arte crítica. Essas formas se traduzem, em Mouffe, na capacidade que a arte que apresenta de provocar dissensões, de tornar visível o que o consenso dominante obscurece. A arte crítica, em Mouffe,
(…) está constituída por uma diversidade de práticas artísticas voltadas à dar voz a todos os silenciados no marco da hegemonia existente. (…) o projeto agonista é, particularmente, apropriado para entender a natureza das novas formas de ativismo artístico que têm surgido recentemente e que, de formas diversas, vêm encaminhadas à impugnar o consenso existente. (Mouffe, 2007: 67/68)

A arte crítica, para Mouffe, é a que está perpassada pela dimensão do político, do conflito. É a que realiza intervenções agonísticas no espaço público, não para promover uma ruptura total com um estado de coisas existente e criar algo absolutamente novo, mas para provocar rupturas, conflitos, ruídos que tragam ao nível da esfera pública discussões, questões, identidades e sujeitos obscurecidos, soterrados sob o pensamento universal do capitalismo.

E dentro do entendimento de Mouffe do que é o político na arte (a capacidade de inserir a crítica e a ruptura no espaço público através do artístico) que pode-se observar como arte e a política se relacionavam no Brasil dos anos 1960 e 1970. No momento em que autores como Jameson e Bürguer pregavam o fim da capacidade crítica da arte pós-moderna, o recrudescimento do governo militar no Brasil ampliava as experiências no espaço público, palco privilegiado para as manifestações artísticas mais radicalmente críticas. Neste momento, grande parte dos artistas não estava tão preocupada em produzir para o mercado de arte, para expor em galerias ou museus. A ditadura – e sua consequente censura aos artistas – impôs uma nova relação artística baseada na necessidade de expressão, de crítica e protesto contra a situação sócio-política.

Este período marca o surgimento, além das experiências ambientais marginais de Oiticica, de manifestações artísticas cunhadas com o termo arte de guerrilha - em que os artistas realizavam ações isoladas, mas com grande potencial ruptor e desestabilizante. É o caso do conhecido trabalho Trouxas (1970) de Arthur Barrio, por exemplo – intervenção urbana em que foram jogadas trouxas ensanguentadas de carne no Rio Arrudas, em Belo Horizonte. As trouxas iam parando nas margens do rio e chamando a atenção dos transeuntes e moradores, por assemelhar-se à imagem de um cadáver coberto por um lençol. Essa era uma crítica aos desaparecimentos de civis durante a ditadura e uma espécie de denúncia dos “desovamentos” de corpos dos assassinados políticos – crimes nunca desvendados.

Outro exemplo de trabalho de guerrilha - pequenas ações que adentram o espaço público e provocam ruídos - é o trabalho de Cildo Meireles Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Cédula (1970). A ação consistia em carimbar em cédulas de cruzeiro (moeda corrente no Brasil do período) a pergunta incisiva: Quem Matou Herzog?, jornalista assassinado nos porões da ditadura naquele ano. Neste trabalho, o artista busca criar um sistema alternativo de informação, questionando a versão oficial da mídia de suicídio. A facilidade de circulação da moeda, permite que a mensagem adentre o espaço público, provocando o conflito, gerando a dúvida em relação à versão hegemônica. A crítica, por sua vez, é protegida pelo anonimato, já que a circulação não permite conhecer a origem da mensagem.

Em Recife, mais especificamente, a arte realizada no espaço público tem, se não o seu nascimento, sua ascensão no cenário artístico promovido por artistas como Paulo Bruscky e Daniel Santiago. Eles foram pioneiros na expansão dos suportes artísticos para além da pintura e da escultura no cenário recifense.

De caráter crítico, as intervenções urbanas de Bruscky e Santiago estão sempre questionando o contexto político e social onde se inserem, o cenário artístico em voga e todos os seus postulados sobre o que é arte e o que não é. Um exemplo que bem apresenta as características da arte realizada por estes artistas naquele período é o projeto Chanteclair (1978), no qual os artistas organizaram uma exposição na zona de prostituição da cidade. O fato de se realizar um evento artístico em uma área da cidade socialmente depreciada, a ressignifica, subverte seus sentidos para revalorizá-la. Trazer a Zona de prostituição para a arte, representa trazer um mundo soterrado pelo discurso moral dominante à visibilidade. É dar aos seres que habitam esse mundo a possibilidade de aparecer, de existir no espaço público, de poder falar sobre si dentro do espaço antagonista que os calam.

       Manifestações agonistas contemporâneas

Atualmente também são inúmeros os exemplos de artistas que atuam no espaço público, provocando rupturas, desvendando fatos e pessoas calados pelo consenso dominante, inserindo o agonismo no espaço democrático da cidade. Ações como a do artista Krzysztof Wodiczko são mecanismos de rupturas e desvendamentos dentro do espaço público, através da inovação e pesquisa artísticas. Wodiczko trabalha sobre os monumentos das cidades, independentemente de suas formas, já que para ele a arquitetura pode funcionar como um agente ideológico ou um parceiro psicológico e tanto pode educar como participar no processo de socialização, na forma como integra seu corpo com nossos corpos, na forma como pode mudar ou destruir nossas vidas (Freire,1997). Este artista faz intervenções com projeções de imagens em prédios públicos em várias cidades.
Uma das mais conhecidas, é a projeção de um míssil feita sobre um monumento da internacional comunista em uma cidade da Polônia. Esse trabalho é irônico por subverter o significado original do monumento – uma exaltação à revolução comunista – e colocar sobre ele questionamentos outros sobre a violência e a validade dessa revolução para a população.

Ainda mais recente é o trabalho do artista polonês Artur Zmijewski. Trazido para participar do projeto Políticas da Arte, da Fundação Joaquim Nabuco,em 2010, o artista apresentou vídeos que, com ironia, trazem à tona questões soterradas da discussão em seu país. Em um dos vídeos, pessoas brincam nuas dentro de um espaço apertado e sufocante. Correm dando tapinhas umas nas outras, num frenesi quase infantil. Durante cerca de dez minutos, tenta-se descobrir onde é que estas pessoas estão, até que o artista revela que estão todos presos em uma antiga câmara de gás de um campo de concentração polonês.

Porém, o vídeo mais impressionante é o que contém, reunidas em uma mesma sala, pessoas de diversas facções ideológicas da polônia: um grupo católico reacionário, outro mais liberal e outro comunista. O artista cria uma espécie de dinâmica de grupo explosiva entre eles, revelando suas hostilidades e levando-os à guerra, literalmente. Num primeiro dia, os participantes são convidados a criar símbolos que representem aquilo que acreditam e porque lutam. No outro dia, são feitas camisas para cada um com estes símbolos, identificando-os como diferentes uns dos outros. Num outro momento, eles são convidados a modificar no símbolo do grupo oposto aquilo que creem ser ofensivo aos seus ideais (que está errado).

Tudo começa bem civilizadamente, as pessoas receosas de interferir nos símbolos do outro grupo, pedindo licença e desculpa, discordando de forma educada e discreta. Porém, ao final da semana, os participantes já estão discutindo entre si, se agredindo verbalmente, destruindo as camisas uns dos outros, tocando fogo nos emblemas e atirando-os pela janela. Um verdadeiro cenário de guerra se forma e as pessoas já nem se importam mais com a câmera do artista que, impassível, somente assiste a confusão.

Zmijewski, como um cientista, reproduz em laboratório a realidade que domina o exterior no seu país. Os conflitos ideológicos que levam à guerras e disputas constantes, que provocam imensa instabilidade política, estão representados no nível da população comum. Não são homens da política, mas sim senhoras e jovens, habitantes da Polônia, divididos politicamente em facções hostis. O artista mostra, assim, aos próprios participantes, como o ódio está baseado em ideias, em símbolos que os levam a uma luta sangrenta em defesa deles. Mostra à Polônia que tudo não passa de construções verbais e simbólicas e que é possível modificá-las. Tenta destruir o discurso hegemônico rompendo-o em sua origem, causando o ruído e a dúvida sobre a sua validade universal. “Será mesmo que tem que ser assim? Será que não pode ser de outro jeito?”, os participantes perguntam-se ao deparar-se com os restos de sua guerra. Ao questionar-se sobre suas verdades, os participantes deixam entrever o ruído que foi inserido no espaço público pelo trabalho de Zmijewski. A arte, aqui, mostrou sua capacidade ruptora e ressignificativa de discursos e verdades universais.

É assim que a arte pós-moderna – também conhecida como contemporânea – é crítica. Ela não mais se engaja em projetos amplos de modificação universal da sociedade. A arte, agora, abriga o político, a condição de poder inserir questionamentos, conflitos, rupturas e revelações no espaço público, subvertendo discursos, ativando sujeitos e revelando identidades definidas e obscurecidas por discursos dominantes e excludentes. Já não se trata mais de uma mudança universal da sociedade, mas de pequenas inserções críticas, voltadas para inserir o agonismo no espaço público antagonista. A arte já não tem mais a necessidade de ser política, de servir a um projeto político amplo de revolução e libertação dos sujeitos. Ela só precisa ser arte, dentro do espaço público da sociedade global onde ela se insere.

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